domingo, 9 de novembro de 2014

CRÔNICA DO DIA: 5 HORAS E 30 MINUTOS DE SILÊNCIO!


13h – Horário de Brasília. 25 participantes na sala. 11 faltosos.
Começava o martírio. Distribuímos as provas, explicamos o que podia e o que não podia fazer e eles, coitados, ouviam-nos atenciosamente.
Começaram a folhear aquelas 90 questões de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias e a tão temida Redação.
Tive compaixão de muitos. Olhavam-me, desde já, com um olhar tão ansioso, tão nervoso e tão temeroso, por não saberem o que os aguardava naquela tarde de domingo, naquelas folhas desconhecidas, naquele silêncio que foi se agravando à medida que o tempo passava.
Eles poderiam estar numa praia, numa ilha paradisíaca, num balneário, mas estavam ali, em pleno domingo, gastando os neurônios que ainda possuíam, depois de meses de estudo para alguns.
      Percebi que a candidata sentada logo na frente, bem próxima à minha mesa, era minha aluna da EEMOAP. Eu a reconheci, dei um ar de riso para ela e ela retribuiu do mesmo jeito, apesar da apreensão do momento. 
        Pensei comigo: “Ah, se eu pudesse ajudá-la de alguma forma!...” Ela provavelmente pensou a mesma coisa: “Ah, se o professor Josinaldo pudesse me dizer alguma coisa da prova de inglês!... Eu seria eternamente grata.” Não pude. Infelizmente não pude: o Regulamento do Exame não permitia. Mas vontade tive, pelo menos a vontade o Regulamento não proibia ainda.
      E assim, iam passando os segundos, os minutos, as horas e o silêncio dominava a sala, e o silêncio dominava os corredores, o jardim, o pátio, a escola inteira. Apenas os olhares trocavam conversas entre si: quando algum deles precisava ir ao sanitário ou beber água, olhavam para mim e apontavam para a porta, como quem diz: “Posso sair? Preciso tomar água! Preciso ir ao banheiro!” E eu, com a cabeça, autorizava.
     Toda vez que um dos candidatos agia assim, eu chamava com um aceno um fiscal volante, que se dirigia até minha porta e conduzia o participante a seu destino desejado naquele momento.
    A fiscal volante de meu corredor era tão engraçada, tão gordinha, tão sorridente que toda vez que eu a chamava, ela se levantava solenemente de sua cadeira e caminhava, caminhava apressadamente até minha porta e levava ao destino o participante requerente. Tenho certeza que ela se sentiu feliz com essa rotina, pois deve ter ficado mais leve uns dois quilos, tal era a alegria com que se aproximava de mim.
      Em minha sala, comecei a observar um por um dos candidatos, para ver se havia ali, perto deles, alguma cola. Não encontrei nenhuma. Ao passar o olhar lentamente pela sala, comecei, então, a perceber física e psicologicamente os seres que havia ali: uma gordinha de óculos, totó na cabeça e camisa florida; uma moreninha muito abatida, parecia estar com fome; uma magrinha, tão triste, parecia se sentir mal; minha aluna da EEMOAP, que veio com um short tão curto: não sei como entrou na escola! E os rapazes, mas estes nem reparei, porque minha compaixão é pelas mulheres. Tenho dó delas, por serem frágeis.
      Eu sinto a alma feminina. Talvez seja eu um Chico Buarque, que tanto cantou as mulheres, ou melhor, que tanto esteve na pele delas para poder cantá-las. Eu e Chico somos deveras dois feministas: 
      Mas voltemos à sala: de tanto observar o sofrimento alheio feminino que me compadeci destas quatro mulheres, em minha sala do Exame.
     O silêncio que se fazia naquela tarde de domingo era descomunal! A sala estava tão concentrada que dava até sono. Só o barulho do ventilador e nada mais! Mas de repente, uma voz grita do corredor: "Oh, Jéssica, fica aqui, filha, enquanto eu vou ali!" Era Valéria, uma das aplicadoras do Exame, que sem querer fez com que todos participantes de minha sala olhassem no mesmo instante para mim, cobrando providências.
     Instintivamente fui até a porta e, com apenas meu olhar e minha cabeça, que balançava negativamente, repreendi o comportamento dela, que nem ligou, pelo contrário, ainda teve a ousadia de perguntar em alto e bom som: "Não tem copo descartável aí, não, Jó?" Eu mantive minha elegância: apenas balancei negativamente a cabeça e fiz uma expressão de que não havia. E ela saiu, segura de que não tinha feito nada demais.
      Em minha sala, voltei para minhas quatro protegidas. Percebi que estavam aflitas, porque toda vez que eu me dirigia ao quadro branco para retirar uma das etiquetas do cronômetro, o tempo se esvaía e elas pareciam se desesperar, por não terem concluído ainda o Exame.
      Uma delas coçava a cabeça e fingia arrumar o cabelo; outra suava, bebia água e respirava fundo; a outra olhava para mim e mostrava-se preocupada, como quem diz: "Por favor, professor, me ajude aí!" Ah, se eu pudesse me comunicar com elas apenas por telepatia, eu teria dito: "Calma, minhas filhas, a partir de agora vocês são minhas protegidas e só ouvirão o que eu disser, combinado? Comecemos pela prova de Redação: mas antes, não fiquem desconfiadas, senão os outros candidatos reclamam.  Apenas olhem para mim e eu saberei com quem estou falando. Conversarei apenas com uma de vocês e as outras só escutam, certo?" Olhariam para mim. "Você, de óculos e blusa florida, a proposta de redação traz quantos textos?" E ela responderia: "Três." Eu então continuaria: "Pelo que você leu, é dissertação ou narração?" E ela: "Aqui diz que é para falar sobre a publicidade infantil em questão no Brasil." E eu: "Então vocês vão mostrar e defender o ponto de vista que têm sobre este tema." E elas olhariam para mim: "Mas como começamos, professor?..."
      Ah, eu teria dito em pensamentos tantas coisas a essas meninas, que só Deus saberia e a coordenação do Exame jamais tomaria ciência.
       Só para ajudar minhas protegidas, eu seria capaz de, em pensamentos, ditar uma por uma as palavras das redações que construiria na hora, mas este poder ainda é um mistério para os homens.
       E quando faltava meia hora para o término das provas, eu declarei: "A partir de agora, quem quiser, pode levar seu caderno de questões." Elas, mais uma vez, olharam para mim, como que apreensivas, por não terem terminado ainda o Exame: "Meu Deus, estamos perdidas!"
     E assim, usando Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, tivemos um domingo inesquecível, cheio de bocejos, suspiros, olhares e muito silêncio, tanto silêncio que a vontade era rasgar a tarde com um: "Ah, eu quero gritar!"

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